quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Simone de Beauvoir in O Segundo Sexo, volume 1, D. Quixote, 2015.

“É, portanto, à luz de um contexto ontológico, económico, social e psicológico que teremos de esclarecer os dados da biologia. A sujeição da mulher à espécie, os limites das suas capacidades individuais, são factos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tão-pouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das acções e no seio de uma sociedade; a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta: porque é que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana.”


Maria Teresa Horta in Meninas – Lápis-Lazúli, D. Quixote, 2014.

“A menina que ia de lado, os lábios junto da barriga da mãe, bebia-lhe o cheiro a rosas selvagens que lhe chegava coado pela seda escarlate do vestido liso, a ondear ao longo das coxas altas, perto dos seus lábios ávidos e humedecidos, enrugando odores anisados que lhe enchiam a boca de saliva. E foi quando, ao virar a cabeça de cabelos encaracolados cor de fogo, de onde iam caindo um após outro os laços de um amarelo-pálido, rosto afogueado no desejo de erguer-se na direcção da luz, encontrou abaixo do ombro da mãe, e sob o pulso que a estreitava nervoso e fabril, a delineada doçura dos seios delicados e, mais acima, desviados numa inquietude esquiva, os olhos lápis-lazúli ponteados de estrelas que ela sempre ia inventando em translúcidos simulacros de realidade.”


domingo, 27 de dezembro de 2015

Agustina Bessa-Luís in Eugénia e Silvina, Guimarães Editores, SA.

“A família é uma forma de sequestro, e o sequestro desenvolve sonhos eróticos e de glória, devoções estáticas e rasgos patrióticos em geral susceptíveis de discordar do sólido julgamento das pessoas.”


Sven Lindqvist in Terra Nullius, Tinta-da-China.

“Não se pode viajar na história, mas pode-se ir para o lugar onde ocorreu o passado. Rapidamente se deixa de saber quando aconteceu, somente onde aconteceu e onde continua a acontecer."


Bernardo Soares/Fernando Pessoa in O Livro do Desassossego, Ática, 1982.

“As últimas notícias são estas. Há também o estado da guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma., não muito diferente destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre muito seu
Fernando Pessoa”

sábado, 26 de dezembro de 2015

Simone de Beauvoir in O Segundo Sexo, volume 1, D. Quixote, 2015.


“Assim como não é possível medir a sua posse do mundo, não é possível medir no abstracto a carga que constitui para a mulher a função geradora: a relação da maternidade com a vida individual é naturalmente regulada nos animais pelo ciclo do cio e das estações: ela é indefinida na mulher; só a sociedade pode decidir dela. Segundo essa sociedade exija maior ou menor número de nascimentos, segundo as condições higiénicas em que se desenvolvam a gravidez e o parto, a escravização da mulher à espécie faz-se de maneira mais ou menos estreita.
Assim, se podemos dizer que entre os animais superiores a existência individual se afirma mais imperiosamente no macho do que na fêmea, na humanidade as «possibilidades» individuais dependem da situação económica e social.”



Maria Teresa Horta in Meninas – Lápis-Lazúli, D. Quixote, 2014.

“Em contraluz e falando devagar, modelando as palavras, a mãe disse:
- De ti não quero mais nada! Levo comigo a roupa do corpo e a nossa filha.
Pegou nela, fininha e atordoada, bibe de bordado inglês no peitilho a defender o vestido de organdi cor de romã com mangas de balão enfunadas, pô-la debaixo do braço e, contornando o maple de veludo grená, começou a andar na direcção da porta do escritório, enquanto em silêncio o pai, sentado à pesada secretária de mogno diante dos cadernos de capa de oleado preto e dos livros sublinhados, ficou imóvel,
de uma palidez doentia,
sem no entanto dar qualquer sinal do arrepio que sempre provoca o ínvio encontro com a adversidade. Ao vê-la afastar-se da sua vida: loura e esguia, olhos lápis-lazúli toldados pela mornidade das pestanas, pernas altas à transparência da saia lilás, leve balancear das ancas magras.”


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Agustina Bessa-Luís, in Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, 2008.


Genealogia

“Em todos nós, mesmo sem sermos cronistas, historiadores ou confortáveis narradores de romances de família, se encontra o direito ao movimento regressivo, o desejo de coincidência que se projecta nos séculos, o desejo de arrancar ao esquecimento, a verdade que nos permite o estado normal de trabalhar e de amar.”