terça-feira, 29 de março de 2016

Virginia Woolf in II – O Tempo Passa, Rumo ao Farol, Relógio D’Água, 2008.

“A casa estava abandonada; a casa estava deserta. Era como uma concha na duna a encher-se de grãos de sal ressequido, agora que a vida a deixara. Dir-se-ia estabelecida a longa noite; e as frívolas correntes de ar mordendo, os pegajosos golpes de vento tacteando, dir-se-ia haverem triunfado. Cobrira-se de ferrugem a frigideira, a esteira corrompera-se. Os sapos tinham penetrado na casa. Negligentemente, sem objetivo, o xaile baloiçante oscilava de lado para lado. Um cardo introduzira-se por entre os azulejos da despensa. As andorinhas faziam ninho na sala de estar: o chão estava juncado de palha; o estuque caía às pazadas; as vigas estavam à vista; as ratazanas acarretavam isto e aquilo, para roer por detrás do forro das paredes. As borboletas rompiam as crisálidas, fervilhavam de vida contra as vidraças. As papoilas implantavam-se por entre as dálias; o relvado acenava na sua longa relva; alcachofras gigantes alteavam-se pelo meio das rosas; um cravo frisado florescia entre as couves; enquanto o suave bater de uma erva daninha se convertera, nas noites de Inverno, no tamborilar das árvores robustas e das sarças de espinhos que, no Verão, tornavam o quarto completamente verde.”


segunda-feira, 28 de março de 2016

Maria Teresa Horta in A Dama e o Unicórnio, D. Quixote, 2013.

Senti saudades da Dama e do Unicórnio...

NINFA

Vê a ninfa
sair do bosque
*
Identidade intacta
como tem a rosa
*
O ruído e as palavras
tropeçam-lhe na língua
*
E no seu corpo desliza
o insaciável desejo


quarta-feira, 23 de março de 2016

Agustina Bessa-Luís in Contemplação Carinhosa da Angústia, Guimaraes Editores.

“Francamente – porque acham que eu escrevo? Para incomodar o maior número de pessoas com o máximo de inteligência. Por narcisismo, que é um facto civilizador. Para ganhar a vida e figurar no Larousse com o mesmo realismo utópico aplicado a Madameb de Pompadour. Que, sendo pequenina e abonecada, ali se apresenta como “grande, bien-faite”. A fama de uma pessoa confunde o juízo, como o amor fabuloso e o erotismo pedante. Escrevo para desiludir com mérito, que é a maneira de se fazer lembrar com virtude.”


segunda-feira, 21 de março de 2016

Maria Teresa Horta in As Luzes de Leonor, D. Quixote, 2011, pág. 245.

Eu cantarei um dia
*
Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns termos tão ternos e saudosos,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal, que lhes não pesa.
*
Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.
*
Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos:
*
Mas há! Que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.