Concluí ontem à noite a leitura de Horas Vivas,
de Natália Nunes (1921-1918), uma pequena obra literária (111 págs.) que entrou
no meu acervo ainda não decorreu um mês e seguiu direta para o rol de leituras no
feminino em progresso, as folhas vinham fechadas, uma edição um ano mais antiga
do que o meu Luis.
Há muito que tenho o hábito de ler o prefácio
duas vezes, a primeira antes e a segunda depois de concluída a leitura da obra.
O prefácio de Horas Vivas, da responsabilidade de Mário Sacramento, “Aveiro,
Maio de 1968”, é de imprescindível leitura per si e
pelas luzes que coloca no caminho da leitura deste pequeno romance
memorialista.
“O tanger de um sino só se ouve, em
literatura, da maneira que Fernando Pessoa indicou: ecoa na nossa «alma
distante». Já não é um som, é um advérbio, como o mostra um dos mais vivos
passos deste belo livrinho: «o sino tocava a finados vibrantemente, oh! Sim
vibrantemente! Vitoriosamente e inexoravelmente»”.
“Gosto deste livro. Porquê? Eis para o que
serve um prefácio: para amarmos menos – mediante a abstracção que preceitua – o
que era directo na adesão simbólica. Explicar um gosto é desgostarmo-nos dele
distanciando-o. Corre nestas páginas uma linfa pura: a alvorada de uma grande
escritora, (…).”
“Com menos de sete anos, Taia vai de Lisboa
para o campo. Toda ela é sentidos e imaginação. Pelo sentidos canaliza a
natureza e o social: as amoras verdes que acidulam o gosto, a mica faiscante
que deslumbra a vista, as urtigas que fustigam a pele, o rosmaninho que
rescende, os besoiros que sucumbem, o
velo adulto que o pudor esconde, o incenso que da igreja se evola, o
tloque-tloque dos tamancos que passam, a feia língua que se recolhe a hóstia, o
calafrio ou o rubor que as emoções causam.”
Da obra, propriamente dita, encantei-me com a
frescura, a leveza, a ingenuidade, mas também, com a profundidade e o sentido
por detrás de certas narrativas, um olhar que uma criança muitas vezes não
alcança e que só o cuidado de um adulto atento consegue deixar impresso no
texto, especialmente no tempo em que foi publicado, o texto abarca o período que a autora
passou em Oliveira de Frades, região de Viseu - dos sete aos dez anos - por
motivo de convalescença de seu pai.
“Se era uma distração agradável apanhar as
rãs, quase era melhor ficar ali gozando aquela integridade. E digo gozando
porque se tratava de algo que me dava impressão de plenitude contente de si
mesma. E a minha contemplação era às vezes tão profunda, tão perfeita, que era
como se todo o meu ser, por instantes, tivesse sido absorvido e assimilado por
aquela unidade.”
“O que eu esperava, no entanto, era o fim, o
fim de tudo. Até ao momento de ser fechado o caixão, via-se o morto muito
quieto, sem mexer, sem falar mas parecendo ter afinal um resto de vida só por
se encontrar ainda entre os vivos. Estava em família, entre pessoas e coisas
conhecidas, talvez ouvisse mesmo as vozes e sentisse o cheiro das flores à sua volta.”
Poderia continuar a transcrever partes de um
texto que descreve de forma magistral as diferenças sociais, desde os lugares
que as “senhoras” e as outras ocupavam na igreja, passando pela descrição do
aspeto físico da “Cândida Maluca”: “(…)quando
tirava a capucha via-se-lhe um cabelo raro, empastado e pegado ao couro da
cabeça por causa de andar sempre achatado e de nunca levar pente. A cara era
pálida, magra e sulcada; os olhos sem alma, a boca sem vida. (…)” ou como
os homens devoravam a comida e a bebida, em troca de trabalho duro na quinta: “(…)
Eles gostavam de trabalhar na nossa casa: dava-se-lhes bom vinho e boa comida.
(…).”
Enfim, este é um texto riquíssimo de conteúdos e
sentimentos, pueris por um lado, amadurecidos pelo outro.
Termino esta reflexão mais longa do que o
habitual, não sem antes vos contar que As Velhas Senhoras e Outros Contos
e Assembleia de Mulheres, ambas pela Relógio D’Água, em (1992) e (1999),
respetivamente, ficarão a aguardar oportunidade de encontro.
Natália Nunes, uma escritora esquecida a
necessitar de ser reeditada, recomendo vivamente a sua descoberta…
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