domingo, 4 de agosto de 2019

Livro: Horas Vivas, Natália Nunes, D. Quixote, 1952.


Concluí ontem à noite a leitura de Horas Vivas, de Natália Nunes (1921-1918), uma pequena obra literária (111 págs.) que entrou no meu acervo ainda não decorreu um mês e seguiu direta para o rol de leituras no feminino em progresso, as folhas vinham fechadas, uma edição um ano mais antiga do que o meu Luis.

Há muito que tenho o hábito de ler o prefácio duas vezes, a primeira antes e a segunda depois de concluída a leitura da obra.

O prefácio de Horas Vivas, da responsabilidade de Mário Sacramento, “Aveiro, Maio de 1968”, é de imprescindível leitura per si e pelas luzes que coloca no caminho da leitura deste pequeno romance memorialista.

O tanger de um sino só se ouve, em literatura, da maneira que Fernando Pessoa indicou: ecoa na nossa «alma distante». Já não é um som, é um advérbio, como o mostra um dos mais vivos passos deste belo livrinho: «o sino tocava a finados vibrantemente, oh! Sim vibrantemente! Vitoriosamente e inexoravelmente»”.

Gosto deste livro. Porquê? Eis para o que serve um prefácio: para amarmos menos – mediante a abstracção que preceitua – o que era directo na adesão simbólica. Explicar um gosto é desgostarmo-nos dele distanciando-o. Corre nestas páginas uma linfa pura: a alvorada de uma grande escritora, (…).”

Com menos de sete anos, Taia vai de Lisboa para o campo. Toda ela é sentidos e imaginação. Pelo sentidos canaliza a natureza e o social: as amoras verdes que acidulam o gosto, a mica faiscante que deslumbra a vista, as urtigas que fustigam a pele, o rosmaninho que rescende, os besoiros que sucumbem,  o velo adulto que o pudor esconde, o incenso que da igreja se evola, o tloque-tloque dos tamancos que passam, a feia língua que se recolhe a hóstia, o calafrio ou o rubor que as emoções causam.”

Da obra, propriamente dita, encantei-me com a frescura, a leveza, a ingenuidade, mas também, com a profundidade e o sentido por detrás de certas narrativas, um olhar que uma criança muitas vezes não alcança e que só o cuidado de um adulto atento consegue deixar impresso no texto, especialmente no tempo em que foi publicado, o texto abarca o período que a autora passou em Oliveira de Frades, região de Viseu - dos sete aos dez anos - por motivo de convalescença de seu pai.

Se era uma distração agradável apanhar as rãs, quase era melhor ficar ali gozando aquela integridade. E digo gozando porque se tratava de algo que me dava impressão de plenitude contente de si mesma. E a minha contemplação era às vezes tão profunda, tão perfeita, que era como se todo o meu ser, por instantes, tivesse sido absorvido e assimilado por aquela unidade.

O que eu esperava, no entanto, era o fim, o fim de tudo. Até ao momento de ser fechado o caixão, via-se o morto muito quieto, sem mexer, sem falar mas parecendo ter afinal um resto de vida só por se encontrar ainda entre os vivos. Estava em família, entre pessoas e coisas conhecidas, talvez ouvisse mesmo as vozes e sentisse o cheiro das flores à sua volta.”

Poderia continuar a transcrever partes de um texto que descreve de forma magistral as diferenças sociais, desde os lugares que as “senhoras” e as outras ocupavam na igreja, passando pela descrição do aspeto físico da “Cândida Maluca”:  “(…)quando tirava a capucha via-se-lhe um cabelo raro, empastado e pegado ao couro da cabeça por causa de andar sempre achatado e de nunca levar pente. A cara era pálida, magra e sulcada; os olhos sem alma, a boca sem vida. (…)” ou como os homens devoravam a comida e a bebida, em troca de trabalho duro na quinta: “(…) Eles gostavam de trabalhar na nossa casa: dava-se-lhes bom vinho e boa comida. (…).

Enfim, este é um texto riquíssimo de conteúdos e sentimentos, pueris por um lado, amadurecidos pelo outro.

Termino esta reflexão mais longa do que o habitual, não sem antes vos contar que As Velhas Senhoras e Outros Contos e Assembleia de Mulheres, ambas pela Relógio D’Água, em (1992) e (1999), respetivamente, ficarão a aguardar oportunidade de encontro.

Natália Nunes, uma escritora esquecida a necessitar de ser reeditada, recomendo vivamente a sua descoberta…


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