Está a
tornar-se um hábito concluir a leitura de um livro durante a pausa para o almoço,
antes ou após o mesmo consoante o horário que faça, aqueles vinte
e cinco minutos de diálogo com os meus amigos palavrosos sabem muito bem. Durante a tarde o
expediente corre ligeiro…
Ontem coube a
vez a António Lobo Antunes (ALA), com Memória de Elefante, uma trigésima
sexta edição, o seu primeiro livro publicado (1979).
Durante vários
anos fui uma devotada leitora das suas crónicas na revista Visão, e realmente
andava há algum tempo para me aventurar em leituras de maior fôlego, mas
confesso que achava que a leitura não seria fácil, mercê quiçá do muito que vou lendo por aí, criticas ótimas, mas outras… as suas entrevistas são quase sempre
polémicas, cheias de considerandos, por vezes nada simpáticos, sobre os colegas de ofício,
mas o que fazer, mau feitio já se vê…
Ora um dia destes coloquei de
lado as reticências e avancei, não me dececionei, numa escrita densa, numa torrente
de palavras amargas, sarcásticas, duras, às vezes doces, o narrador escreve
sobre a profissão, psiquiatra, sobre os seus doentes, a sua relação com a
sociedade, sobre as vivências na guerra colonial, sobre a família, o pai, a
mãe, os irmãos, sobre o amor que sente pelas filhas, sobre a separação da
mulher e sobre o amor que ainda sente por ela.
“- Quanto
mais se conhecem os homens mais se apreciam os electrodomésticos, respondeu ela.
Eu vivo maritalmente com um fogão de dois bicos e somos felizes. Só é pena o
pulmão de aço da botija de gazcidla.
- Num asilo de
malucos onde estão os malucos? insistiu o médico. Porque nos arrastamos aqui,
nós os que ainda possuímos licença de saída diária, se todas as semanas há um
barco para a Austrália e existem boomerangs que não regressam ao ponto de
partida?”
(…)
“-Porque
não? Porque não? Homem você é um anarquista, um marginal, você pactua com o Leste,
você aprova a entrega do Ultramar aos pretos.
Que sabe este
tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de
Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados
prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de
cinquenta anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe
este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus
dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angustia de ter de
escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão,
que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávidas espancadas
pela Pide, das minas a florirem sob as rodas das camionetas em cogumelos de
fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero?”
António Lobo
Antunes demonstrando de uma formidável cultura literária, escreve sobre
relações humanas, ligações complexas, sobre situações e experiências que vivenciamos.
Muito bom.
Ao autor,
prémio Camões em 2007 e inúmeras vezes candidato a Prémio Nobel, hei de regressar, aos meus amigos, convido a ler Memória de Elefante…
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