terça-feira, 3 de março de 2020

Livro: Memória de Elefante, António Lobo Antunes, BIIS – Leya, 2018.


Está a tornar-se um hábito concluir a leitura de um livro durante a pausa para o almoço, antes ou após o mesmo consoante o horário que faça, aqueles vinte e cinco minutos de diálogo com os meus amigos palavrosos sabem muito bem. Durante a tarde o expediente corre ligeiro…

Ontem coube a vez a António Lobo Antunes (ALA), com Memória de Elefante, uma trigésima sexta edição, o seu primeiro livro publicado (1979).

Durante vários anos fui uma devotada leitora das suas crónicas na revista Visão, e realmente andava há algum tempo para me aventurar em leituras de maior fôlego, mas confesso que achava que a leitura não seria fácil, mercê quiçá do muito que vou lendo por aí, criticas ótimas, mas outras… as suas entrevistas são quase sempre polémicas, cheias de considerandos, por vezes nada simpáticos, sobre os colegas de ofício, mas o que fazer, mau feitio já se vê…

Ora um dia destes coloquei de lado as reticências e avancei, não me dececionei, numa escrita densa, numa torrente de palavras amargas, sarcásticas, duras, às vezes doces, o narrador escreve sobre a profissão, psiquiatra, sobre os seus doentes, a sua relação com a sociedade, sobre as vivências na guerra colonial, sobre a família, o pai, a mãe, os irmãos, sobre o amor que sente pelas filhas, sobre a separação da mulher e sobre o amor que ainda sente por ela.

“- Quanto mais se conhecem os homens mais se apreciam os electrodomésticos, respondeu ela. Eu vivo maritalmente com um fogão de dois bicos e somos felizes. Só é pena o pulmão de aço da botija de gazcidla.
- Num asilo de malucos onde estão os malucos? insistiu o médico. Porque nos arrastamos aqui, nós os que ainda possuímos licença de saída diária, se todas as semanas há um barco para a Austrália e existem boomerangs que não regressam ao ponto de partida?”
(…)
-Porque não? Porque não? Homem você é um anarquista, um marginal, você pactua com o Leste, você aprova a entrega do Ultramar aos pretos.
Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de cinquenta anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angustia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávidas espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas das camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero?”



António Lobo Antunes demonstrando de uma formidável cultura literária, escreve sobre relações humanas, ligações complexas, sobre situações e experiências que vivenciamos. Muito bom.

Ao autor, prémio Camões em 2007 e inúmeras vezes candidato a Prémio Nobel, hei de regressar, aos meus amigos, convido a ler Memória de Elefante


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