domingo, 3 de janeiro de 2016

Vasco Graça Moura in Em homenagem a José da Cruz Santos, JL nº 1180 de 2015-12-23.

Inédito

Um homem gostava de glicínias…

um homem gostava de glicínias, de ver, de respirar
o seu arabesco perfumado pelas tardes de verão.
e também gostava de palavras, do modo como elas
se afirmam contra a morte, e das plantas fez

a sua catedral, mandava-as vir de toda a parte,
saboreava-as e dava-as aos amigos, e tinha, também tinha amigos
a quem falava das glicínias, da sua sombra delicada
no passar dos anos, e a quem falava das palavras,

da sua excepcional violência a iluminar, fulgurantes,
toda a noite do mundo, mas doía-lhe o seu tempo,
de catástrofes e vítimas, desventuras e agressões, entre
glicínias e amigos, palavras e angústias, fez-se e cresceu.

fez-se a crescer numa cidade e nela havia um rio
e poentes engolfados nas ondas atlânticas, toda a sua existência
engendraria uma música e um enredar misterioso
das coisas e das sombras nas águas desse rio.

e hoje vemos isto: um homem, o seu trabalho,
e a sua sóbria dignidade
de amigo simples das palavras e das glicínias,
dando a mão aos amigos e a dizer-lhes calmamente:
sim, esta é a minha vida.



Sem comentários:

Enviar um comentário