domingo, 29 de dezembro de 2019

Apontamentos para Anna Akhmatova.

Nos seus andrajos
as pernas cobertas por ligaduras, redes de
poeira, e nos pés umas botas disformes
de sola, trapos, pedaços de lã
cordéis.
Um grosso casaco de capuz, roto, sem cor, sujo.
Arrastava-se por entre fumos e pequenas
labaredas, óleo que manchava a terra sêca
árvores mortas arbustos sem folha; um cão
observava-a de longe, acossado, temeroso
nem sequer tentava aproximar-se no esqueleto da sua
fome.
Parou no que restava de um rio, margem
coalhada de nauseante negro
e ajoelhou-se no desequilíbrio do corpo
sobre o pus de água e com as mãos
em concha levou aos lábios. O cão
chegou e pelo cheiro tentou descobrir as diferenças
das suas existências. E não havia ninguém que
os pudesse ver,
nenhuma consciência que soubesse sustentar o juízo
«eu acabo de sentir uma dor»; uma parte de esterco
e o tempo é pelo meio de um século, pelo exacto começo de outro.

Anna Akhmatova, in Poemas, tradução do russo, selecção e notas de Joaquim Manuel Magalhâes e Vadim Dmitriev, Relógio D'Água, 2003.

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